A expansão da telemedicina e dos laudos a distância trouxe eficiência às operações de saúde, mas também um efeito colateral pouco comentado: a incerteza sobre onde o ISS (Imposto Sobre Serviços) deve ser recolhido. Em um país com mais de cinco mil municípios e regras locais distintas, é comum que prefeituras diferentes reivindiquem a mesma receita. O resultado pode ser bitributação (duas cobranças sobre o mesmo serviço), glosas no faturamento e passivos difíceis de reverter. Este guia explica, em linguagem direta, como clínicas, laboratórios, hospitais‑dia e healthtechs podem organizar contratos, notas fiscais e rotinas internas para reduzir riscos e pagar o imposto no lugar certo.
O que muda quando o serviço é digital
Nos modelos tradicionais, o serviço era prestado e faturado no mesmo endereço físico; o ISS seguia o "estabelecimento prestador". Quando entram em cena a teleconsulta e o laudo remoto, a cadeia se descola no espaço: o exame pode ser feito em uma cidade, o laudo emitido em outra, o paciente em uma terceira e a plataforma hospedada em nuvem. Além disso, parte dessas operações envolve SaaS (software como serviço) e intermediação entre prestadores e pacientes. Cada uma dessas naturezas tem tratamento próprio e, se forem misturadas no contrato ou na nota, a chance de conflito tributário sobe.
Entenda o seu modelo de receita antes de faturar
A primeira pergunta não é "quanto é a alíquota?", e sim "que serviço estou prestando?".
Se há contato clínico direto com o paciente (teleconsulta, teleinterconsulta), estamos diante de ato assistencial. Se o núcleo é a emissão de laudo a distância, mapeie de onde parte a obrigação (e a remuneração) do laudo: do laboratório/centro de diagnóstico que contrata o médico laudista? da clínica que terceiriza o serviço?
Já quando a atividade é plataforma (prontuário eletrônico, PACS, serviço de nuvem, agendamento), a natureza é tecnológica; e, se há intermediação (marketplace), a receita da plataforma não se confunde com a do profissional de saúde.
Cada natureza pede um contrato próprio e uma NFS‑e com código de serviço e descrição coerentes.
Onde o ISS é devido na prática
Em termos simples, o ISS é municipal. Na maioria dos cenários, a análise passa por três eixos:
Quem é o tomador do serviço (paciente pessoa física ou pessoa jurídica como clínica, hospital, operadora)?
Onde está o estabelecimento que emite a nota e assume a prestação?
Há retenção de ISS pelo tomador (muitos municípios exigem que clínicas/hospitais retenham o imposto ao pagar fornecedores)?
Quando o tomador pessoa jurídica retém o ISS, esse recolhimento, se devidamente comprovado, afasta uma nova cobrança sobre a mesma operação em outro município. Por isso, contratos e NFS‑e precisam indicar com precisão a natureza do serviço e quem é o tomador. Descrições genéricas como "serviços diversos" abrem espaço para interpretações contraditórias entre prefeituras.
Como evitar a bitributação sem complicar o seu dia a dia
A bitributação costuma nascer da falta de consistência entre contrato, cadastro municipal e nota fiscal. O antídoto é organização.
Contratos com linguagem clara
Diferencie "teleconsulta", "telediagnóstico/laudo remoto", "plataforma (SaaS)" e "intermediação"
Aponte quem é o tomador e se há retenção
Preveja a forma de comprovação (recibos, RPA, guias) e a compensação quando o imposto for retido na origem
Cadastros e NFS‑e alinhados
Verifique a necessidade de inscrição municipal em outras cidades quando houver habitualidade de prestação
Emita as notas com o código de serviço correto e descrição compatível com o contrato
Guarde o comprovante de retenção do cliente PJ e concilie com a sua apuração mensal
Se um segundo município questionar, a prova documental encerra o litígio na origem
Erros que mais geram autuações (e como fugir deles)
O roteiro dos problemas se repete:
Contratos "guarda‑chuva" que misturam tecnologia com assistência
Notas resumidas que não permitem entender o que foi vendido
Retenções ignoradas por falta de conferência
Ausência de cadastro onde a prestação é habitual
O ajuste é menos glamouroso do que um "grande parecer", mas é o que funciona: contratos separados por natureza, NFS‑e específicas e um checklist mensal no financeiro que compare notas, retenções e conciliações por município.
Checklist essencial (para fixar o que não pode faltar)
✓ Descrever corretamente a natureza do serviço em contrato e na NFS‑e (ato assistencial, laudo remoto, SaaS, intermediação)
✓ Identificar o tomador e verificar se há retenção de ISS. Guardar os comprovantes
✓ Separar receitas por notas/códigos e, quando necessário, obter inscrição municipal adicional
✓ Manter uma matriz simples por cliente: serviço → cidade → retenção → documento de prova
Perguntas que recebemos com frequência
"Se a clínica parceira reteve o ISS, ainda devo pagar na minha cidade?" Em regra, não. A retenção comprovada quita o imposto daquela operação.
"Plataforma e serviço médico são a mesma coisa para o ISS?" Não. Tecnologia e ato assistencial têm tratamentos diferentes; misturá‑los na nota é convite para conflito.
"Preciso me cadastrar em todo município onde tenho paciente?" Não necessariamente; mas, em operações recorrentes, algumas prefeituras exigem inscrição. Vale checar caso a caso, antes do faturamento.
Conclusão
Telemedicina e laudos remotos só entregam todo o seu potencial quando o faturamento acompanha a realidade do serviço. Com contratos limpos, NFS-e coerentes e prova de retenção organizada, você evita a cobrança em duplicidade, reduz passivos e ganha previsibilidade de caixa. É um trabalho de bastidor que sustenta a escalabilidade do negócio.