Flavia Franceschetti
5 min de leitura

A expansão da telemedicina e dos laudos a distância trouxe eficiência às operações de saúde, mas também um efeito colateral pouco comentado: a incerteza sobre onde o ISS (Imposto Sobre Serviços) deve ser recolhido. Em um país com mais de cinco mil municípios e regras locais distintas, é comum que prefeituras diferentes reivindiquem a mesma receita. O resultado pode ser bitributação (duas cobranças sobre o mesmo serviço), glosas no faturamento e passivos difíceis de reverter. Este guia explica, em linguagem direta, como clínicas, laboratórios, hospitais‑dia e healthtechs podem organizar contratos, notas fiscais e rotinas internas para reduzir riscos e pagar o imposto no lugar certo.


O que muda quando o serviço é digital

Nos modelos tradicionais, o serviço era prestado e faturado no mesmo endereço físico; o ISS seguia o "estabelecimento prestador". Quando entram em cena a teleconsulta e o laudo remoto, a cadeia se descola no espaço: o exame pode ser feito em uma cidade, o laudo emitido em outra, o paciente em uma terceira e a plataforma hospedada em nuvem. Além disso, parte dessas operações envolve SaaS (software como serviço) e intermediação entre prestadores e pacientes. Cada uma dessas naturezas tem tratamento próprio e, se forem misturadas no contrato ou na nota, a chance de conflito tributário sobe.


Entenda o seu modelo de receita antes de faturar

A primeira pergunta não é "quanto é a alíquota?", e sim "que serviço estou prestando?".

Se há contato clínico direto com o paciente (teleconsulta, teleinterconsulta), estamos diante de ato assistencial. Se o núcleo é a emissão de laudo a distância, mapeie de onde parte a obrigação (e a remuneração) do laudo: do laboratório/centro de diagnóstico que contrata o médico laudista? da clínica que terceiriza o serviço? 

Já quando a atividade é plataforma (prontuário eletrônico, PACS, serviço de nuvem, agendamento), a natureza é tecnológica; e, se há intermediação (marketplace), a receita da plataforma não se confunde com a do profissional de saúde.

Cada natureza pede um contrato próprio e uma NFS‑e com código de serviço e descrição coerentes.


Onde o ISS é devido na prática

Em termos simples, o ISS é municipal. Na maioria dos cenários, a análise passa por três eixos:

  1. Quem é o tomador do serviço (paciente pessoa física ou pessoa jurídica como clínica, hospital, operadora)?

  2. Onde está o estabelecimento que emite a nota e assume a prestação?

  3. Há retenção de ISS pelo tomador (muitos municípios exigem que clínicas/hospitais retenham o imposto ao pagar fornecedores)?

Quando o tomador pessoa jurídica retém o ISS, esse recolhimento, se devidamente comprovado, afasta uma nova cobrança sobre a mesma operação em outro município. Por isso, contratos e NFS‑e precisam indicar com precisão a natureza do serviço e quem é o tomador. Descrições genéricas como "serviços diversos" abrem espaço para interpretações contraditórias entre prefeituras.


Como evitar a bitributação sem complicar o seu dia a dia

A bitributação costuma nascer da falta de consistência entre contrato, cadastro municipal e nota fiscal. O antídoto é organização.


Contratos com linguagem clara

  • Diferencie "teleconsulta", "telediagnóstico/laudo remoto", "plataforma (SaaS)" e "intermediação"

  • Aponte quem é o tomador e se há retenção

  • Preveja a forma de comprovação (recibos, RPA, guias) e a compensação quando o imposto for retido na origem


Cadastros e NFS‑e alinhados

  • Verifique a necessidade de inscrição municipal em outras cidades quando houver habitualidade de prestação

  • Emita as notas com o código de serviço correto e descrição compatível com o contrato

  • Separe receitas distintas em notas distintas (ato assistencial ≠ SaaS ≠ intermediação)


Rotina financeira com lastro documental

  • Retenção na fonte não é "opinião"

  • Guarde o comprovante de retenção do cliente PJ e concilie com a sua apuração mensal

  • Se um segundo município questionar, a prova documental encerra o litígio na origem


Erros que mais geram autuações (e como fugir deles)

O roteiro dos problemas se repete:

  • Contratos "guarda‑chuva" que misturam tecnologia com assistência

  • Notas resumidas que não permitem entender o que foi vendido

  • Retenções ignoradas por falta de conferência

  • Ausência de cadastro onde a prestação é habitual

O ajuste é menos glamouroso do que um "grande parecer", mas é o que funciona: contratos separados por natureza, NFS‑e específicas e um checklist mensal no financeiro que compare notas, retenções e conciliações por município.


Checklist essencial (para fixar o que não pode faltar)

Descrever corretamente a natureza do serviço em contrato e na NFS‑e (ato assistencial, laudo remoto, SaaS, intermediação) 

Identificar o tomador e verificar se há retenção de ISS. Guardar os comprovantes 

Separar receitas por notas/códigos e, quando necessário, obter inscrição municipal adicional

 ✓ Manter uma matriz simples por cliente: serviço → cidade → retenção → documento de prova


Perguntas que recebemos com frequência

"Se a clínica parceira reteve o ISS, ainda devo pagar na minha cidade?" Em regra, não. A retenção comprovada quita o imposto daquela operação. 

"Plataforma e serviço médico são a mesma coisa para o ISS?" Não. Tecnologia e ato assistencial têm tratamentos diferentes; misturá‑los na nota é convite para conflito. 

"Preciso me cadastrar em todo município onde tenho paciente?" Não necessariamente; mas, em operações recorrentes, algumas prefeituras exigem inscrição. Vale checar caso a caso, antes do faturamento.


Conclusão

Telemedicina e laudos remotos só entregam todo o seu potencial quando o faturamento acompanha a realidade do serviço. Com contratos limpos, NFS-e coerentes e prova de retenção organizada, você evita a cobrança em duplicidade, reduz passivos e ganha previsibilidade de caixa. É um trabalho de bastidor que sustenta a escalabilidade do negócio.

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